Do ovo e a galinha ou do
Brasil e a Nação.
Se Clarice disse ou se
outros já fizeram, não sei, mas serve para o café da manhã.
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De manhã na cozinha sobre
a mesa vejo o Brasil.
Olho o Brasil com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar
vendo um Brasil. Ver o Brasil nunca se mantêm no presente: mal vejo um Brasil e
já se torna ter visto o Brasil há três milênios. – No próprio instante de se
ver o Brasil ele é a lembrança de um Brasil. – Só vê o Brasil quem já o tiver
visto. – Ao ver o Brasil é tarde demais: Brasil visto, Brasil perdido. – Ver o Brasil
é a promessa de um dia chegar a ver o Brasil. – Olhar curto e indivisível; se é
que há pensamento; não há; há o Brasil. – Olhar é o necessário instrumento que,
depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o Brasil. – O Brasil não tem um
si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o Brasil é impossível: o Brasil é supervisível como há sons supersônicos.
Ninguém é capaz de ver o Brasil. O cão vê o Brasil? Só as máquinas vêem o Brasil.
O guindaste vê o Brasil. – Quando eu era antiga um Brasil pousou no meu ombro.
– O amor pelo Brasil também não se sente. O amor pelo Brasil é supersensível. A
gente não sabe que ama o Brasil. – Quando eu era antiga fui depositária do Brasil
e caminhei de leve para não entornar o silêncio do Brasil. Quando morri,
tiraram de mim o Brasil com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo
veria o Brasil. Como o mundo o Brasil é óbvio.
O Brasil não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o Brasil
propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, Brasil. Você é branco. –
A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao Brasil dedico a nação chinesa.
O Brasil é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem
pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do Brasil. – Olho o Brasil na cozinha
com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não
entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque
estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. –
Jamais pensar no Brasil é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do Brasil? É
quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do Brasil é o
que realmente importa. O que eu não sei do Brasil me dá o Brasil propriamente
dito. – A Lua é habitada por Brasis.
O Brasil é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O Brasil desnuda a
cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O Brasil expõe. – Quem se aprofunda
num Brasil, quem vê mais do que a superfície do Brasil, está querendo outra
coisa: está com fome.
O Brasil é a alma da nação. A nação desajeitada. O Brasil certo. A nação
assustada. O Brasil certo. Como um projétil parado. Pois Brasil é Brasil no
espaço. Brasil sobre azul. – Eu te amo, Brasil. Eu te amo como uma coisa nem
sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê
o Brasil. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do Brasil seria morrer para a
vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O Brasil me vê. O Brasil me
idealiza? O Brasil me medita? Não, o Brasil apenas me vê. É isento da
compreensão que fere. – O Brasil nunca lutou. Ele é um dom. – O Brasil é
invisível a olho nu. De Brasil a Brasil chega-se a Deus, que é invisível a olho
nu. – O Brasil terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi
se ovalando. – O Brasil é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro
moldado pelos etruscos ? Não. O Brasil é originário da Macedônia. Lá foi
calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um
homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O Brasil é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a nação é o disfarce do Brasil.
Para que o Brasil atravesse os tempos a nação existe. Mãe é para isso. – O Brasil
vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O Brasil
por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da nação para que
não o chamem de branco. O Brasil é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de
branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam Brasil de
branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco
pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era,
e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda
não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos:
pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter
esgotado o assunto.
Com o tempo, o Brasil se tornou um Brasil de nação. Não o é. Mas, adotado,
usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o Brasil da nação”. Se eu disser apenas
“o Brasil”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao Brasil, o
perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua
veracidade. A veracidade do Brasil não é verossímil. Se descobrirem, podem
querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o Brasil, ele não
se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a
grande força do Brasil: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se
irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria
perdendo a própria vida. O Brasil nos expõe, portanto, em perigo. Nossa
vantagem é que o Brasil é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados
disfarçam o Brasil.
Quanto ao corpo da nação, o corpo da nação é a maior prova de que o Brasil não
existe. Basta olhar para a nação para se tornar óbvio que o Brasil é impossível
de existir.
E a nação? O Brasil é o grande sacrifício da nação. O Brasil é a cruz que a nação
carrega na vida. O Brasil é o sonho inatingível da nação. A nação ama o Brasil.
Ela não sabe que existe o Brasil. Se soubesse que tem em si mesma o Brasil,
perderia o estado de nação. Ser nação é a sobrevivência da nação. Sobreviver é
a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a
nação faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta
contra a vida que é mortal. Ser nação é isso. A nação tem o ar constrangido.
É necessário que a nação não saiba que tem um Brasil. Senão ela se salvaria
como nação, o que também não é garantido, mas perderia o Brasil. Então ela não
sabe. Para que o Brasil use a nação é que a nação existe. Ela era só para se
cumprir, mas gostou. O desarvoramento da nação vem disso: gostar não fazia
parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o Brasil
que achou a nação. A nação não foi sequer chamada. A nação é diretamente uma
escolhida. – A nação vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o
susto da nação é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A nação é um
grande sono. – A nação sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o Brasil.
– Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de
erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a nação. A nação tem muita
vida interior. Para falar a verdade a nação só tem mesmo é vida interior. A
nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “nação”. A vida interior
na nação consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em
escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o Brasil não se quebre dentro
dela. Brasil que se quebra dentro de nação é como sangue.
A nação olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um Brasil.
Fora de ser um meio de transporte para o Brasil, a nação é tonta, desocupada e
míope. Como poderia a nação se entender se ela é a contradição de um Brasil? O Brasil
ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A nação é sempre tragédia mais
moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não
se achou a forma mais adequada para uma nação. Enquanto meu vizinho atende ao
telefone ele redesenha com lápis distraído a nação. Mas para a nação não há
jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu
destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o Brasil, a sua vida
pessoal não nos interessa.
Dentro de si a nação não reconhece o Brasil, mas fora de si também não o
reconhece. Quando a nação vê o Brasil pensa que está lidando com uma coisa
impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o
reconhece.
De repente olho o Brasil na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e
meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais
enxergar o Brasil. Fora de cada Brasil particular, fora de cada Brasil que se
come, o Brasil não existe. Já não consigo mais crer num Brasil. Estou cada vez
mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um Brasil e
ele me foi adormecendo.
A nação não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A
que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa
iluminura o Brasil, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma.
A que pensou que tinha penas de nação para se cobrir por possuir pele preciosa,
sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao
carregar o Brasil, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o Brasil. A
que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se
distraísse totalmente enquanto o Brasil se faria. A que não sabia que “eu” é
apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera
tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um
si-mesmo. As naçãos prejudiciais ao Brasil são aquelas que são um “eu” sem
trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a
palavra “Brasil”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o Brasil precisava. Pois
se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que
se faz dentro delas, atrapalhariam o Brasil.
Comecei a falar da nação e há muito já não estou falando mais da nação. Mas
ainda estou falando do Brasil.
E eis que não entendo o Brasil. Só entendo o Brasil quebrado: quebro-o na
frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do Brasil: meu
sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da
minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem
viu o Brasil, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e
lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver
os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de
viver.
Pego mais um Brasil na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste
instante exato nunca existiu um Brasil. É absolutamente indispensável que eu
seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam.
Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o Brasil e o renegam como forma
de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós,
agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às
vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós
nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o
disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a
verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido
participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande
desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há
os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal.
É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a
desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não
envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para
aqueles que, sem ele, corromperiam o Brasil com a dor pessoal. Isso não faz do
amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles
que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o Brasil se faça. Não é
o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as
dos outros, são apenas as condições ideais para o Brasil. Quanto ao prazer dos
agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os
prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o Brasil se faça. Já nos foi
imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo
menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas
instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou
publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele
não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de
um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se
consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que
as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve
outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente
dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em
nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era
ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa
limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de
morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser
feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em
consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as
instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa
vida humana enfim.
Os Brasis estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã.
Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas,
arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e
rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós
somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai,
viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e
não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e
aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego
que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso
emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como
diária para facilitar a minha vida de modo a que o Brasil se faça, pois esse
dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei
ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária
modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que
no ócio honrado o Brasil se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres
ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do Brasil. Esta é a minha
simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o Brasil
se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que
é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada,
eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais
absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando
ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente
por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que
termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente
esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete
mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a
marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja
extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me
querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção
errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo
através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido
para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que
meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar
adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não
adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas
vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou
instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu
poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me
estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula.
Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde
então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já
me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e
que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o
que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito;
isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu
pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu
pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos
não sei.
Mas e o Brasil? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o Brasil,
eu tinha esquecido do Brasil. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o Brasil
fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das
instruções, estou tão cansada.
Por devoção ao Brasil, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu
interesseiro esquecimento. Pois o Brasil é um esquivo. Diante de minha adoração
possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for
esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o Brasil for impossível.
Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda
ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de
madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha
palidez.